sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Artigo de António José Saraiva

A professora Eunice teve a amabilidade de nos mostrar este artigo de António José Saraiva, publicado na revista Tabu do Jornal Sol:

"Na noite de fim de ano, no meu bairro, aproximaram-se de mim dois cachorros mais ou menos do mesmo tamanho – nem grandes nem pequenos –, um escuro, malhado, outro claro. Tinham uma expressão triste e pareciam acompanhar-se um ao outro na desgraça. Seriam cães vadios? Nada disso! Eram cães abandonados.
Por isso se aproximaram de mim: estão habituados à presença dos humanos. Mais: têm necessidade do calor humano. É sempre assim nas férias – de Verão, do Natal ou da Páscoa. Não percebo como se abandona um cão. Para quem não sabe, os cães são animais que confiam incondicionalmente nos donos, que se lhes entregam sem reservas, que saltam de contentamento quando eles chegam a casa e que aceitam docilmente os castigos que eles lhes infligem – porque acham que os donos têm sempre razão.
Como escrevi um dia, os cães vêem nos donos os seus deuses.
Na sociedade americana o cão é um membro da família – não digo como qualquer outro, mas imprescindível e com direitos. O Presidente dos Estados Unidos tem protocolarmente mulher, filhos… e um cão. Um cão que figura sempre na fotografia oficial. Recorde-se a grande expectativa que se gerou quando chegou a altura de Obama escolher a raça do cão que iria integrar a família presidencial – escolha que acabou por recair num cão de água português (embora o cão não seja português mas americano, oferecido pelo entretanto falecido Ted Kennedy).
Diz-se ainda que, quando Bill e Hillary Clinton não se falavam, após as revelações sobre práticas menos ortodoxas ocorridas na Casa Branca envolvendo o Presidente, a filha Chelsea tomou o partido da mãe e também deixou de falar ao pai. Assim, o ambiente na residência presidencial tornou-se irrespirável. Com excepção de mãe e filha, ninguém falava com ninguém naquela casa. O silêncio era tumular.
Ora, o único ser que continuou sempre a relacionar-se normalmente com todos os membros da família foi o cão – Buddy. O animal tornou-se o único elo de união entre aquelas pessoas que, vivendo na mesma casa, mal se olhavam de frente.
Como é possível abandonar um ser com estas qualidades? Um ser que gosta incondicionalmente de todos os membros da família – embora tenha com cada um deles uma relação diferente, o que ainda torna essa ligação mais especial. De facto, um cão nunca se relaciona do mesmo modo com duas pessoas. E sabe até onde pode ir com cada uma e o que pode esperar dela. Sabe quem brinca com ele e quem não brinca, quem lhe faz festas (e portanto vale a pena ele deitar-se a seus pés ou sentar-se a seu lado) e quem geralmente o ignora. Um cão conhece bem as visitas habituais da casa. Gosta de crianças e adora brincar com elas, percebendo as suas fragilidades. É fantástico ver um cão grande brincar com uma criança pequena, usando de mil cuidados para não a magoar.
Ora – insisto – como é possível abandonar um ser com estas características? Como pode alguém atirar para a rua um animal que confia nele de modo absoluto e incondicional? Como pode trair essa confiança? Como consegue escorraçar um cão com quem brincou, que o adorou, que o recebia aos saltos e de rabo a abanar de alegria?
É terrível votar-se uma pessoa ao abandono. Mas no caso das pessoas ainda é possível perceber muitas vezes as razões. Nas relações entre os humanos existem ofensas, ódios acumulados, ciúmes, invejas, incompreensões, incompatibilidades de feitios, problemas de carácter. Mas na relação com um cão não pode haver nada disto. Os cães não nos ofendem – pelo contrário, adoram-nos. A amizade de um cão pelo dono não depende de nada – e a sua fidelidade é total. Não existe nenhuma razão que justifique tratar mal um cão, quanto mais abandoná-lo.
Mas há quem o faça. E por isso, em muitos casos, o réveillon dos cães é muito diferente do das pessoas: enquanto estas se juntam em família, os cães arriscam-se a ser postos fora de casa. Porque os donos querem ir de férias descansados, para a neve ou para um desses destinos exóticos onde nesta época do ano é Verão e não Inverno, e que as agências de viagens vendem ao desbarato.
Os destinos exóticos são frequentemente praias do Nordeste brasileiro. Areais que não conheço mas que certamente valem a pena. Praias pelas quais as pessoas perdem a cabeça (e às vezes a vida, como agora em Angra dos Reis), a ponto de porem os seus próprios cães na rua.
Mas será que depois não têm remorsos? Não pensarão no mal que fizeram para terem uns dias a escorregar na neve ou de barriga para o ar a apanhar sol? Não pensarão que atiraram o seu cão para a morte – apanhado na rua pela camioneta dos cães, metido no canil camarário à espera de ser abatido?
Vivemos um tempo em que as pessoas procuram o prazer imediato, como se o mundo estivesse para acabar. Vive-se o momento, suga-se o efémero. Não se troca nada por isso. Recusam-se os sacrifícios – porque não valem a pena. Cada um concentra-se em si próprio, não quer maçadas nem compromissos. Não quer ter filhos porque não abdica da saída à noite ou da ida ao cinema ao fim-de-semana – ou ainda porque antes disso está a compra do computador, do telemóvel de última geração, do plasma que acabou de sair e é irresistível… Ou a tal viagem à neve ou à praia no Inverno.
Há alguma coisa que valha isto? Valerá a pena abdicar de tudo isto por um filho? E a satisfação de um capricho não valerá bem o abandono de um cão?
É difícil explicar a quem pensa deste modo que assim não encontrará a felicidade. Que por este caminho nunca será feliz. A felicidade não se alcança através do prazer imediato, do telemóvel de última geração, das férias na Serra Nevada, no Brasil ou nas Maldivas.
A prova está no gigantesco consumo de Prozacs e quejandos nas sociedades mais ricas e que mais consomem.
A felicidade consegue-se doutro modo: constrói-se como uma casa. E, como acontece com quem quer construir uma casa, há que fazer renúncias, abdicar de alguns prazeres, não ir atrás do instante, ser capaz de resistir ao impulso imediato.
Nessa construção podem não entrar o telemóvel de última geração ou a roupa de marca ou o plasma – mas entra certamente a família, entram os filhos e os sobrinhos, entram as relações sólidas que fomos estabelecendo, entra uma obra que conseguimos concretizar e que nos orgulha... – e entra muitas vezes o cão que alguns põem fora de casa nesta época do ano."

Alegra-nos saber que temos companhia na denúncia deste triste fenómeno.

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